Retratar um artista nos últimos anos de vida e, ao mesmo tempo, recapitular sua trajetória é um desafio. Mais eficaz que a cinebiografia, o documentário pode ser um campo fértil de expressão — mas também de armadilhas. Felizmente, As Cores e Amores de Lore (2024), de Jorge Bodanzky, evita essas ciladas com elegância, oferecendo um retrato sensível e honesto da artista plástica alemã-brasileira Eleonore Koch.
Longe de longos depoimentos e excesso de reverência, Bodanzky usa sua experiência — de obras como Iracema – Uma Transa Amazônica (1975) — para construir um filme que se guia por três princípios: ser transparente sobre sua relação com a retratada, dar voz direta à artista e espelhar sua estética na linguagem do filme. Lore ganha espaço para refletir, silenciar, contradizer-se. É a partir de suas cartas, cadernos, obras e fotografias que o documentário se desenha — e se destaca.

A relação entre realizador e artista tem uma origem afetiva: a mãe de Bodanzky trabalhou com Koch nos anos 1950. Essa conexão pessoal permite ao cineasta também revisitar suas próprias memórias, traçando paralelos com a vida de Lore — especialmente o êxodo forçado de ambas as famílias da Alemanha nazista. Há, portanto, uma viagem compartilhada de reencontros e projeções, como a identificação entre Lore e a mãe do cineasta.
Lore também era filha de Adelheid Koch, pioneira da psicanálise no Brasil, e o documentário não ignora os atravessamentos dessa herança. Ser mulher, artista e solteira torna-se uma escolha radical — e política. “Para ser artista, é preciso ter liberdade. Todas elas”, diz Lore, ao comentar sua decisão de não casar nem ter filhos. Com delicadeza, o filme trata das dores e dignidade dessa solitude, sem julgar e deixando ao espectador eventuais conclusões.
Um dos momentos mais especiais é quando a artista abre seu processo criativo de forma simples e direta. A cor como estrutura, a linha como forma, a repetição como método. A fotografia tem papel importante: servia de referência, de registro, e de ponte entre o que via e o que viria a produzir. “O que eu queria pintar, eu fotografava”, afirma.

Entre memórias afetivas e frustrações profissionais — como seu ressentimento com a Bienal de São Paulo — o filme mergulha também em suas paixões: os flertes com Torquato Neto, o triângulo amoroso com Ziembinski e Guerreiro, e as cartas apaixonadas de Paulo Emílio Sales Gomes, com quem assistiu Hiroshima, Meu Amor. Foi o seu quase-casamento.
A trajetória de Lore passa ainda por Londres, onde buscou sustento como artista e encontrou em Alistair McAlpine um mecenas encantado por seu trabalho. Mas o desencaixe persistia, e o retorno ao Brasil, nos anos 1990, selou um ciclo. No fim da vida, viveu entre o desencanto e a lucidez: “Nunca me arrependi”, disse a Bodanzky. Mesmo com dificuldades financeiras e enfrentando a venda da casa da sua família, sentia-se realizada em sua arte e falava com entusiasmo e propriedade.
Ao destacar a importância de saber a hora de parar — algo que, segundo ela, Volpi não soube fazer — Lore encerra com sabedoria uma vida pautada pela autonomia. A exposição póstuma na Bienal e a dolorosa imagem do espólio sendo vendido nos lembram os acertos e descompassos da vida de uma artista que sempre foi completa.