Em Democracia em Vertigem, lançado em 2019, Petra Costa gerou posicionamentos extremos a respeito de seu documentário, profundamente impactado pelo momento político que o Brasil vivia à época, com a ascensão do bolsonarismo logo após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Já em Apocalipse nos Trópicos (2024), surpreende a ausência de uma avalanche de comentários, mesmo em meio às exibições exclusivas em festivais de cinema. Talvez seja um reflexo de uma espécie de ressaca ou de uma confusa aceitação de que a democracia brasileira está, de alguma forma, funcionando bem. Ou talvez se deva ao fato de que o novo trabalho de Petra é menos pessoal, menos centrado no ambiente familiar, e mais focado no coletivo. O que é certo é que a realizadora e sua equipe registram e condensam — tarefa nada simples — momentos cruciais da história recente do nosso país, tendo como fio condutor o fundamentalismo religioso e sua relação com a política.
Inspirada pelo podcast norte-americano Apocalypse Now, do Frontline (PBS), no qual seus criadores analisaram a influência dos cristãos e do fundamentalismo religioso na guinada conservadora nos Estados Unidos, Petra percebeu paralelos no sistema político e social brasileiro. Sua análise encaixa-se perfeitamente na ascensão da extrema-direita bolsonarista e da bancada evangélica. Afinal, mais de 30% da população brasileira se declara evangélica, algo que se reflete cada vez mais nas escolhas políticas expressas na Praça dos Três Poderes. É nesse contexto que Apocalipse nos Trópicos se apresenta, sem abrir mão de um personagem que conecta boa parte do cenário brasileiro: o pastor Silas Malafaia.
Mais do que um pastor sensacionalista a esbravejar salmos e provérbios, Petra encontra em Malafaia alguém disposto a falar e a expor as iniciativas da igreja evangélica para fomentar a ascensão de políticos fundamentalistas que travam uma guerra contra uma suposta ideia de demonismo. Não se trata apenas do “fantasma do comunismo”, mas de um “demônio” que, segundo essa visão, teria se infiltrado na política brasileira: a esquerda e suas pautas progressistas. Um peão importante nessa batalha? Jair Messias Bolsonaro. Como Malafaia discursa em um dos momentos mais humilhantes e cômicos do documentário, Bolsonaro seria, metaforicamente, um receptáculo — algo vazio e sem ideias — para que Deus pudesse agir e governar através dele. Tudo isso é dito com Bolsonaro ao lado, exibindo aquele semblante incômodo e desprovido de expressão.
Ao longo do documentário, fica ainda mais claro algo que já sabemos: os meandros dessa guerra não têm como objetivo o bem do próximo, mas sim a conquista e manutenção do poder. Poderíamos até dizer que os evangélicos no Congresso hoje são os “novos militares”. No entanto, dado o contexto recente da política brasileira, em que nossa democracia escapou por muito pouco de um golpe de Estado, o que se evidencia é um poder paralelo que flerta com os militares, o liberalismo e o fascismo. Todos, porém, compartilham o mesmo objetivo: reivindicar o crédito por terem alçado Bolsonaro da posição de deputado “palhaço” de programas sensacionalistas na televisão à figura de um presidente-receptáculo.
Com uma capacidade exemplar de condensação e um ritmo preciso dividido em capítulos, Petra narra a cronologia dos eventos dos últimos anos. Passa pela facada que “elege” Bolsonaro, em 2018, e também pela prisão de Lula; pela revelação da trama de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol na Lava Jato, até alcançar um dos momentos mais emocionantes: a libertação de Lula da prisão e o início da campanha tumultuada de 2022. Nesse ponto, o governo Bolsonaro usou inúmeros recursos da máquina pública para tentar impedir, sem sucesso, a eleição de Lula ao Planalto. Ainda assim, Petra não poupa críticas à esquerda e a Lula. De maneira sutil, mas enfática, reforça sua tese de que governar no Brasil sem o apoio da bancada evangélica é extremamente difícil. Ela destaca, por exemplo, que em 2002 Lula escreveu uma carta aos banqueiros, enquanto em 2022 escreveu aos evangélicos, num aceno raro e estratégico.
Em entrevista à cineasta, Lula reforça sua visão de que o socialismo cometeu um erro ao ignorar a religião em sua constituição. Não que Lula concorde ou deseje um governo teocrático, mas reconhece que a humanidade nem sempre age de forma racional. Como Petra afirmou recentemente, a crise do iluminismo, da humanidade e da esquerda como movimento cria espaço para fomentar uma guerra fundamentalista cujas raízes estão nos evangelistas norte-americanos. Nesse sentido, a cineasta consegue fazer um filme que é, ao mesmo tempo, uma retrospectiva para os brasileiros e um alerta para norte-americanos e outros países que enfrentam uma ascensão conservadora com flertes com o extremismo.
Por fim, longe de dar ponto sem nó, Petra encerra seu filme enquadrando um dos prédios do Congresso Nacional visto através de um vidro estilhaçado da invasão de 8 de janeiro. A democracia, que antes estava em queda vertiginosa, agora encontra-se assim: estilhaçada. Com os recentes eventos e as investigações sobre a relação entre Bolsonaro e os militares em suas tentativas de golpe, Petra Costa tem, em mãos, o material perfeito para um novo trabalho — e, quem sabe, para completar uma trilogia sobre a democracia e o poder.