Eliza Hittman: Problemas de Garota

Em Never Rarely Sometimes Always a realizadora Eliza Hittman aborda o aborto reforçando o tema da sua filmografia: o jovem estadunidense e suas múltiplas narrativas

O cinema norte-americano possui uma certa tendência em retratar e refletir a respeito de seus adolescentes e as problemáticas dos mesmos através da classe média branca. É raro ver o desenvolvimento de trabalhos que aprofundam-se no íntimo dos jovens com entornos sociais e econômicos de regiões periféricas ou interioranas do país. O grande exemplo de jovem norte-americano reside, em muitos casos, num imaginário clássico onde se encontra a figura de James Dean em Juventude Transviada (Rebel Without a Cause, 1955). Tão emblemático até os dias de hoje esse ícone dos filmes sobre adolescentes em fase de rebeldia só começou a sofrer mudanças com a chegada de uma nova estética no cinema estadunidense durante a década de 1970, visão essa muito atrelada aos movimentos sociais e políticos em que os Estados Unidos passava com levantes dos direitos das mulheres, homossexuais e dos negros.

The Road to Ruin (1928)

Mesmo com essa ideia de uma reconfiguração de papéis dentro das narrativas cinematográficas como consequência da movimentação externa, o retrato dos jovens permaneceu o mesmo durante as décadas 1980 e 1990. Sejam em produções independentes ou de grandes orçamentos. Conforme Thomas Hine desenvolve em diversas publicações, o adolescente médio norte-americano estudado sempre foi homem, heterossexual e de classe média. Para as mulheres, as produções cinematográficas faziam um retrato digno da literatura de Nathaniel Hawthorne, de colocá-las no centro de uma retaliação e usá-las como um péssimo exemplo. A teórica Barbara Jane Brickman disserta1 sobre uma referência que é a gênese da forma em que o cinema retrata as jovens com o filme The Road to Ruin (1928). Utilizada até mesmo em escolas para representar o caminho que levaria as jovens à tal ruína, a produção faz sua protagonista viver a libertinagem e com isso colher os frutos podres que incluem, pela visão dos realizadores, um aborto e uma vida solitária.

Essa visão do aborto no cinema só começa a ter nuances menos moralistas anos depois de sua aprovação pelos congresso americano em 1973. De lá pra cá são inúmeros os filmes que abordaram o tema até mesmo indiretamente. Uma produção sobre o assunto carrega uma carga política, moralista fortíssima e chega a ser quase impossível não carregar uma fonte ideológica. Como exemplo é possível citarmos o recente Unplanned (2019), produzido por grupos anti-aborto e destruído pela crítica especializada2. Sinais dos tempos poderíamos dizer, afinal em um período em que um governo como o de Donald Trump impera com o seu conservadorismo não surpreende este tipo de discurso retrógrado a ganhar espaço também no audiovisual.

É nesta ideia de encaixe político que a diretora Eliza Hittman construiu seu terceiro longa-metragem, o premiado e consequentemente elogiado: Never Rarely Sometimes Always (2020), vencedor de prêmios nos festivais de Berlim e Sundance. Idealizado e produzido durante a transição dos governos de Barack Obama e Trump, Hittman encara o governo do democrata com uma visão realista e nada romantizada sobre o aborto. Existiam falhas ainda no governo de Obama, apesar de muitos pontos progressistas. A ideia de persuadir as mulheres a não abdicarem da gravidez indesejada ainda impera, velada e nas entranhas de alguns cidadãos e alguns especialistas norte-americanos, especialmente no interior do país. Parte daí a ideia da realizadora em retratar uma jovem da Pensilvânia rural que se encontra grávida após uma relação casual. Com receio de ser ainda mais marginalizada em sua cidade, ela opta por viajar à Nova York para realizar o aborto e entra em uma jornada pessoal que beira ao terror psicológico. Como já foi dito, o tema não é uma grandiosa novidade no cinema e já foi desenvolvido com grandeza, por exemplo, em cinematografias periféricas como no emblemático 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias (4 luni, 3 săptămâni şi 2 zile, 2007), do romeno Cristian Mungiu. Porém aqui encontramos uma produção americana e que faz pensar sobre a dificuldade de retratar adolescentes em meio a um tema sem trabalhar motivações moralistas e capaz de representá-los como uma parcela significante da população jovem norte-americana frente à uma lacuna do audiovisual do país. É preciso destacar a realização do filme ser de uma mulher, tanto a direção quanto o roteiro. Um detalhe importante dado os movimentos Time’s Up e #MeToo que colocaram no centro da discussão por diferentes personalidades da indústria cinematográfica, por exemplo, questões de representatividade feminina em diversas áreas de trabalho e criação artística no país, assim como de lugar de fala.

Hittman iniciou em 2003 com o seu primeiro curta-metragem A Lumiere, sobre um menino que apaga um desenho de uma obra em um museu. O seu primeiro longa-metragem só viria 10 anos depois com Parece Amor (It Felt Like Love, 2013) sobre uma jovem e a descoberta de seus desejos e da própria sexualidade. Descobertas, aliás são o ponto de partida ou de chegada dos trabalhos de Hittman. É a clássica jornada do herói (muitas vezes heroínas) e suas transformações. Mas a forma como a realizadora constrói esses dramas e a evolução dos personagens e a forma como decide explorá-los visualmente é por vezes inesperado, delicado ainda que externe muita tensão. Afinal, descobrir quem se é, suas vontades e seus desvios em momentos definidores pode ser aterrorizante mesmo dentro das sutilezas e empatia do olhar detalhista de uma realizadora de trabalho consistente.

Gina Piersanti em cena de Parece Amor

O cinema de Hittman desenvolve questões sobre desejos, frustrações, descobertas e uma busca pelo íntimo dos seus personagens. Ela ainda analisa a presença e nuances do feminino, as diversas facetas dos personagens masculinos e o machismo já intrínseco. A disfuncionalidade familiar é incluída ao fundo ao mesmo tempo que apresenta locais descentralizados, afastados das grandes metrópoles americanas. Suas realizações e traços autorais parecem mais alinhados à cinematografias periféricas de um world cinema do que a do seu próprio país.

O fim da inocência

“É difícil ser jovem. Ele me faz ver coisas que eu não quero ver. Ele tem o poder do amor sobre mim”. Com uma rendição acústica ao clássico dos The Exciters, Never Rarely tem seu início na voz da protagonista Autumn (Sidney Flanagan), jovem estudante que trabalha no período inverso como caixa de supermercado. A canção é apresentada durante um show de talentos da escola e nos introduz à narrativa do filme. Pode e deve ser vista como intencional e reveladora. Resume muito da experiência da garota em sua primeira relação sexual e o envolvimento com um rapaz bronco, seu encantamento e inocência que são quebrados por uma necessidade de enquadrar-se entre os seus iguais. Essa relação tem como resultado uma gravidez inesperada que logo faz acontecer uma jornada da personagem em busca de realizar o aborto ao lado de sua prima e colega de emprego, Skylar (Talia Ryder).

As atitudes das personagens desenvolvidas pela diretora são pautadas como as de muitos outros adolescentes: pelo que julgam e fazem os outros. Quando reflete sobre o que é ser uma garota de sucesso, Autumn logo associa à sua prima. É inevitável a comparação. Skylar é um sucesso. É comunicativa, tem estilo, encaixa-se em diversos ambientes e é desejada pelos rapazes. Já Autumn é marginalizada na escola, tanto que até durante sua apresentação do show de talentos surgem burburinhos e risos da plateia. Ela não se encaixa num padrão e a sua forma de buscar a aceitação acaba por ser através desse primeira e catastrófica relação sexual. Ao livrar-se da virgindade um peso da inocência dava adeus, mas o peso muda para o de uma responsabilidade que ela não tem ainda como arcar.

Isso acontece de modo similar em Parece Amor quando a protagonista, Lila (Gina Piersanti) busca de todas as formas livrar-se da sua virgindade ao longo da projeção. Sua amiga, Chiara (Giovanna Salimeni), tem um relacionamento aberto com um outro jovem. Está sempre a namorar e a fazer sexo. Nessa pressão pela maturidade e uma vida sexualmente ativa, Lila conhece um ex-namorado de Chiara. Ela começa a apaixonar-se por ele e a notar cada vez mais que pela experiência sexual que o rapaz possui, ele pode ser o parceiro ideal para iniciá-la. Mas a jovem não percebe o que é paixão e o que é sexo. Em seu platonismo, Lila contenta-se em ser humilhada em frente aos amigos dele, se diz experiente sexualmente mesmo sem nunca ter concretizado algo. Os perigos que começa a correr e os caminhos que constrói são humilhantes. Hittman constrói nessas narrativas que o microcosmo das personagens não sai ileso às pressões de uma sociedade, mesmo a do próprio ambiente juvenil e escolar que vivem. O bullying, a marginalização e o medo de parecer imaturo aterrorizam elas e levam-nas à situações erráticas e desesperadoras.

A solidão devora a alma

O medo da solidão e da marginalização são laços que todos os filmes de Hittman partilham. Em seu segundo longa-metragem, o sensual e melancólico Beach Rats (2018), Hittman apresenta a história do jovem Frankie, um adolescente presente em um ambiente familiar disfuncional que busca secretamente por encontros sexuais e assim compreender sua sexualidade e desejos. Os encontros se dão com homens mais velhos e afloram um dilema que se desdobra. Mais do que uma sair do “armário” a respeito de sua sexualidade, Frankie precisa admitir seu desejo por homens maduros. O ambiente em que o personagem vive está enraizado, assim como o próprio, em valores machistas e concepções heteronormativas. A impossibilidade da mudança modifica o personagem e o que encontra é a frustração e uma anulação de quem ele realmente é. Em uma das cenas finais, Frankie vê um casal gay beijando-se no comboio e percebe que aquele mundo ele não fará parte, seu destino é a solidão.

A melancolia de Frankie (Harris Dickinson) em Beach Rats

Em Never Rarely, a realizadora persiste pelo medo da solidão de seus personagens. O grande receio de Autumn é a solidão e a sensação de fracasso que isso traz. Isso é, de certa forma, amenizado pela presença quase incondicional de Skylar. São as cenas de intimidade entre as duas em que o filme ganha tons mais amenos e calorosos. Existe uma bela cumplicidade que chega ao seu auge quando Skylar decide ter com um rapaz para pedir ajuda com os bilhetes para as duas retornarem à Pensilvânia. Autumn em um misto de receio da solidão e daquele momento surpreender a relação de ambas que vai ao encontro do casal que está aos beijos na estação.

Por trás de um pilar, Hittman coloca sua câmera no encontro das mãos de Skylar e Autumn, às escondidas do rapaz. As mãos são veículos importantes nos filmes de Hittman. Não são de um teor fetichista como Quentin Tarantino tem com pés, mas sim são as mãos comunicadoras. Elas representam uma busca por afeto e reciprocidade para as personagens tão carentes, mesmo sem demonstrar à superfície. Em Beach Rats, Frankie busca a mão do pai que está em coma. Hittman já em seguida corta para a cena do funeral do patriarca. O encontro das mãos são, por vezes, sobre conclusões e despedidas e se prestam a comunicar o incomunicável. O amor que não é dito, expressado por seus personagens.

Entre homens hostis

Entre motivações e construções, o bebê a caminho não é a solução para a solidão. O que inteligentemente Hittman constrói é que a sua personagem quer pertencer a um lugar e alguém, mas não canalizar isso de forma errônea em uma criança, como dá-se a entender sobre alguns dos adultos presentes. A personagem sabe que não tem estrutura pra isso, mas mesmo assim a decisão de realizar o procedimento não é fácil. Hittman não constrói estradas fáceis para seus personagens e o trabalho de Flanagan como Autumn é excepcional. O olhar externa delicadamente o que não é dito. Os pequenos gestos, toques, sorrisos e sororidade entre as primas/amigas.

A cena mais emblemática para a personagem, e que ali é possível enxergar a carga que a garota carrega, se dá quando ela vai iniciar o procedimento médico e é necessária uma entrevista prévia. Ela precisa responder um questionário sobre o suas relações passadas com algumas opções: nunca (never), raramente (rarely), às vezes (sometimes) e sempre (always). Surge daí o título do filme e também o momento catártico que conhecemos as razões de Autumn, a violência física e psicológica que Hittman economiza o espectador em ordem de desenvolver uma trama que vamos descascando aos poucos e assim podemos compreender melhor as escolhas e caminhos da personagem. A canção entoada no começo do filme não estava ali à toa.

A partir dessa cena fica ainda mais clara a presença masculina para Hittman. Os homens heterossexuais dos filmes da diretora lembram por vezes os homens de alguns filmes de Pedro Almodóvar. Como a crítica Ivonete Pinto comenta em seu texto sobre Never Rarely, durante a cobertura da exibição do filme em Berlim, os homens retratados pela diretora são hostis. E não somente em sua obra mais recente, mas aparecem dessa forma em todos os seus filmes. Os homens funcionam e navegam pela narrativa de modo descompensado. Em alguns casos são brutos e inconsequentes em outros incompreendidos ou sufocados por um machismo latente. Mas em sua maioria são abusivos e ausentes.

Em Beach Rats o pai do protagonista morre já nos 30 minutos iniciais da projeção. Em Parece Amor, a presença paterna não consegue compensar a falta da mãe e não parece lidar com a criação de uma rapariga. Já em Never Rarely, Hittman apresenta o pai da protagonista como uma presença indelicada, de atitudes grosseiras. Ele trata a cachorra da família pelo apelido de “vagabunda”, sendo repreendido pela matriarca. O garoto com quem ela se relaciona descobrimos que a abusava. Está aí a intenção de Hittman em destacar a maneira como os homens enxergam as mulheres ou fêmeas.

Elas a andar

Em meio a tantos homens desprezíveis, é destacável a relação entre as mulheres e a presença delas nas produções de Hittman. Neste aspecto, Parece Amor e Never Rarely compartilham de retratos similares. Suas protagonistas associam-se a amizades e essas amizades são inspiradoras, tanto para atos positivos quanto negativos. É preciso apontar aqui que a realizadora lida com protagonistas presentes em universos disfuncionais e que estão numa ideia de pré-transição entre adolescência e vida adulta. Errantes elas buscam um amadurecimento rápido para se encaixar em um círculo de meninas que já são mulheres. Essa busca imperfeita e ansiosa resulta em experiências frustrantes. A relação dessas garotas com a cidade também é outro ponto importante da construção do filme de Hittman.

Ela desenvolve Never Rarely como um road movie, seja sobre rodas ou sobre pernas incansáveis a desbravar as ruas Nova York por apenas um dia. A “aventura” de Autumn e Skylar nada tem como objetivo aproveitar a grande cidade. É burocrática e fria. Assistimos o andar pelas ruas sempre grudados nas personagens através de uma câmera trepidante, íntima e às vezes até mesmo invasiva. A falta de recursos e a coragem delas em fazer esse caminho é, por vezes, assustadora para o espectador. É criada uma tensão excepcional de um drama vívido.

Autumn (Sidney Flanigan) e Skylar (Talia Ryder) pelas ruas de Nova York em Never Rarely

É excepcional a forma como Hittman traz a relação das suas personagens com as cidades e a maneira como se locomovem nos espaços. Em artigos muito particulares, Imogen Sara Smith3 e Lizzy Stewart4 comentam sobre as mulheres que andam, flanam pelas ruas em diversas narrativas de filmes e livros. Smith, através do blogue da Criterion, traça sua análise para filmes emblemáticos dirigidos por Agnès Varda, Louis Malle e Chantal Akerman. Já Stewart, escritora e ensaísta no Literary Hub, escreve sobre autoras feministas – de Virginia Woolf até Greta Gerwig – e suas concepções a respeito dos espaços e as mulheres em movimento. Se Smith investiga a narrativa de mulheres que agem como flanêurs, o famoso termo cunhado por Charles Baudelaire, o ensaio mais livre de Stewart traça a velocidade e pressa das mulheres em diversos cenários. E a pressa e objetividade é o que Autumn emana em sua caminhada. Não há intenção e espírito para aproveitar a Big Apple. Mesmo quando obrigadas a pernoitar, sem poder pagar um hotel, a aguardar pela consulta.

É sempre exagerado pontuar que um diretor ou diretora em ascensão é um autor. A intenção da crítica em pautar novas tendências e a ansiedade em identificar dentro dos conceitos de autorismo cunhado pelos franceses é uma sombra persistente ao escrever sobre alguns filmes presentes em festivais de cinema, como é o caso de Never Rarely. No caso de Hittman e suas produções até aqui realizadas, é possível perceber que seus filmes convergem em assuntos constantes e abordagens similares. Existe uma estrutura que é flexível conforme seu objeto de estudo, mas ainda assim é o protagonismo que dá aos jovens em seu cinema o cerne de tudo. Seria cedo demais tratá-la como uma grande autora? Talvez, mas é impossível deixar de notar que suas produções são identificáveis e trazem sua marca através de uma estrutura narrativa, da construção de personagens e de diversos detalhes associados à cinematografia impecável desenvolvida pela sua constante colaboradora, a fotógrafa Hélène Louvart.

Provável que Never Rarely seja a realização mais bem finalizada da diretora, com mais nuances e ainda urgência, por tratar de um assunto tão necessário e digno não somente de debate, mas de conscientização de direitos que é o aborto para as mulheres. Hittman entrega-nos uma produção robusta, de posicionamento social, cultural e político. Algo que começa a fazer falta em tempos de tanto retrocesso não somente na América.

  1. BRICKMAN, Jane Barbara. (2012) New American Teenagers: The Lost Generation of Youth in 1970s Film. Nova York, Bloomsbury. ↩︎
  2. https://www.theguardian.com/film/2019/mar/28/unplanned-review-anti-abortion-propaganda-is-a-gory-mess ↩︎
  3. SMITH, Sarah Imogen. (2020) Stepping Out: On Watching Women Walk. Disponível em: https://www.criterion.com/current/posts/6960-stepping-out-on-watching-women-walk ↩︎
  4. STEWART, Lizzy. (2019) An Ode to Women who Walk: From Virginia Woolf to Greta Gerwig. Disponível em: https://lithub.com/an-ode-to-women-who-walk-from-virginia-woolf-to-greta-gerwig/ ↩︎