Os universos de Aronofsky e Mãe!

É bem provável que toda análise que se detenha à nova realização de Darren Aronofsky, Mãe! (mother!, 2017), inicie avisando seus leitores que algumas revelações importantes sobre a trama serão feitas durante a leitura. É complexo dissertar e, principalmente, opinar sobre a produção sem entregar pontos-chave da história. Afinal, a maneira como o filme também foi vendido não representa o que ele realmente é. São contornos e desvios que a produção toma ao longo de sua projeção que surpreende ser um produto de um estúdio de Hollywood em uma época na qual esse tipo de produção se tornou uma anomalia para os produtores e distribuidores de larga escala. Afinal, já se vão anos em que o investimento e espaço para produções com teor mais intelectual e viés dramático perderam território para alienígenas com capas coloridas e super poderes. E, independente das opiniões serem divergentes sobre a qualidade de Mãe!, não há como negar a sua importância nesse cenário saturado.

Em um debate promovido pela Directors Guild of America, a associação de diretores de cinema dos Estados Unidos, Aronofsky acabou questionado por William Friedkin (diretor do clássico O Exorcista) a respeito de como conseguiu apoio de um estúdio para a realização da produção ao custo de $30 milhões de dólares. A resposta foi, na medida do possível, franca. Após o sucesso de Cisne Negro (2012), associado às presenças de Jennifer Lawrence e Javier Bardem, dois atores oscarizados, não foi tão complexo de vender ao estúdio e defender o seu novo projeto. Mas se não foi difícil para o estúdio, o público não pode dizer o mesmo. Enquanto a crítica se divide mais rápido do que um debate político entre esquerda e direita, o público médio não assimilou tão facilmente a história repleta de referencias bíblicas e tom ambientalista de Aronofsky.

Com um roteiro escrito durante cinco dias ininterruptos, o diretor apresenta, para alguns, um filme de alegorias para falar, na superfície, sobre o quão cíclico podem ser os relacionamentos abusivos e o engano a respeito do amor incondicional. Mas isso é o que se apresenta apenas em primeiro plano ao espectador. Na história desse casal que mora isolado em uma casa no campo, eles acabam recepcionando de súbito um médico e sua esposa que aos poucos vão tomando conta do espaço e criando raízes no local. Aronofsky constrói uma trama repleta de meandros que se desenvolvem além do terreno das relações e expande para o uso de passagens da Bíblia e logo desemboca em uma grande metáfora sobre questões ambientalistas. É aí que reside seu diferencial ou, para alguns, o reforço de um cinema participativo que remonta a Ingmar Bergman e Luis Buñuel. A capacidade de Aronofsky em utilizar a metáfora para a sua criação que em alguns momentos é sutil e em outros escrachado.

Jennifer Lawrence interpreta uma jovem que dedica seus dias para reformar a casa em que vive com seu marido, interpretado por Bardem, um poeta em crise com seu trabalho. Ela é prática. Pinta, faz carpintaria e cozinha deliciosas refeições. Parece estar a todo instante disponível para ele. Em suma, preparando o local com um preciosismo e cuidado para que o amado possa desenvolver o seu ofício na completa plenitude e paz. Porém, esse arquétipo do criador, ainda mais representado por um homem, é o retrato da alienação, de uma cegueira que logo o torna egoísta e ela uma bomba relógio.

As atitudes da esposa são passivas e a voz de Lawrence em cena é quase sussurrada. Parece que sua personagem anulou-se por aquele homem que nem mesmo a satisfaz sexualmente. Mesmo com a câmera de Matthew Libatique grudada em seu rosto em belíssimos closes durante quase 80% da projeção, a personagem é apática. E isso não é um erro da interpretação de Lawrence, pois apenas reafirma as várias das problemáticas que o filme apontará mais à frente. Lawrence é um veículo para uma crítica ferrenha à algo maior. Aos homens que usam ciclicamente de mulheres, de uma figura mítica que explora e ignora quem está ao seu redor ou, ainda, o homem e sua ignorância frente à mãe natureza.

Entre a fixação com o labor, que drenou-o completamente, e uma demarcação de seu espaço de maneira egoísta, o poeta obriga, aos poucos, talvez sem nem perceber, que sua esposa seja meramente uma coadjuvante. Essa agonia de sermos espectadores desse redemoinho de desconsideração é tão surreal e arcaico que inicialmente tangencia o cômico. Mas Aronofsky investe no terror e agonia desse pequeno universo, e é necessário admitir que é ainda mais assustador do que assistir um palhaço aterrorizar uma pequena cidade americana. O terrorismo à uma pessoa, ainda mais uma mulher, sendo silenciada e ignorada em uma relação é digno de um pesadelo para qualquer um. É de uma violência que deixa o espectador agoniado.

Com a chegada de um médico (Ed Harris) e sua esposa tresloucada e invasiva (Michelle Pffeifer),  a narrativa de suspense se intensifica, pois não sabemos ao certo as reais intenções daquelas pessoas. À primeira vista a confusão do médico a respeito daquele espaço que ele achava que se destinava à uma pequena pousada subverte-se numa idolatria ao poeta, que é seu escritor favorito. Tudo planejado, muito bem calculado.

Em seus diversos atos, a produção atua com um crescendo, nos levando a uma história que se transforma tendo como base alegorias bíblicas para traçar uma reflexão à respeito da gênese do nosso planeta e da humanidade. O poeta é uma representação de Deus e a mãe é gaia, a mãe natureza. Os intrusos e seus filhos são claramente uma citação a Adão, Eva, Caim e Abel. A mancha que fica no chão onde um dos filhos acaba assassinado, e que não desaparece, é emblemática ao mostrar o momento em que a humanidade mostrou seu primeiro e maior sinal de corrompimento e ganância. E é através desses elementos que Aronofsky quer mostrar a avareza da humanidade. A chegada de mais invasores na casa, em sua maioria os fãs do poeta, trazem a figura da humanidade e sua agiotagem e ilusão frente à falsos profetas. Depredando um espaço que, teoricamente, não é seu e desenvolvendo falácias com violência ao seu próprio povo e ao planeta que é apenas seu lugar de passagem.

Mãe! é de difícil digestão, seja para os que apreciam seu resultado final ou não. Seu ganho está em enganar o espectador, uma trucagem que acaba entregando subtextos, metáforas e suposições que se apresentam em um microcosmo (o ambiente das relações humanas) e também em um macrocosmo (da relação do homem com a natureza e o universo). Temas esses que não são inéditos na obra de Aronofosky, mas que aqui ganham uma intensidade que pode colocar esta produção como o seu melhor e mais bem acabado projeto.


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