No decorrer de Uma Mulher Fantástica (Una Mujer Fantastica, 2017), dirigido pelo argentino-chileno Sebastián Lelio, a protagonista, Marina (Daniela Vega), acaba ouvindo de alguns personagens que eles não conseguem enxergá-la, que não sabem dizer ao certo o que ela personifica e até mesmo a comparam com uma quimera, o conhecido monstro mitológico com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente. A violência dessa associação se dá pela transsexualidade da personagem e a ignorância daqueles que a rodeiam. São reflexos de uma sociedade que ao não compreender o que presencia, se torna irracional, preconceituosa e violenta.
Talvez seja por essa inabilidade de ser vista e compreendida na sua plenitude que Marina é enquadrada seguidas vezes por espelhos no decorrer da sua história. Eles são como afirmações de sua condição feminina. Ela é o que seu reflexo mostra: uma belíssima mulher. Essa necessidade de afirmação é agravada após o falecimento súbito de Orlando (Francisco Reyes), seu marido. Com Marina sendo privada de seus direitos de parentesco pela equipe médica, polícia e família do falecido, ela torna-se alvo da marginalização e de uma violência que em alguns casos não é física, mas psicológica e, ao parecer um golpe sutil, nos dá a impressão de que é indolor, porém é tão nocivo quanto.
Lelio sabe que o atendimento aos transsexuais é sempre repleto de alguns padrões e coloca a polícia desconfiando da relação que Marina teve com Orlando. São lançadas dúvidas até mesmo a respeito de um possível crime passional, o qual sabemos que são infundadas, afinal o casal tinha uma relação estável e de muito companheirismo. São golpes e mais golpes em Marina, mas nada parece ser tão grande quanto o impedimento e a impotência de não poder despedir-se do esposo. Algo que se desdobra em uma luta repleta de humilhações geradas pela ex-esposa de Orlando e os parentes.
Os obstáculos aparecem representados até pela natureza, como na cena de composição surreal em que uma ventania surpreende Marina enquanto ela caminha pela rua. Contra a corrente de vento ela poderia ser facilmente derrubada, mas se mantém firme seguindo a passos lentos, muito obstinada e carregando sua dignidade. É uma maneira suave e delicada de Lelio representar a agressividade que ela enfrenta. Envolvendo-a em uma abordagem humanista, o diretor desenvolve sua protagonista e, como demonstrado, as desigualdades que enfrenta. Tudo muito bem auxiliado pela forte presença de Daniela Vega, a qual performa uma Marina que em alguns momentos se mescla com a sua própria vivência. A atriz, que é transsexual, explora um olhar que é hipnótico, uma presença firme e carismática em cena. Com seu belíssimo talento vocal ainda canta uma composição da ópera de Handel, “Ombra Mai Fui”, que também traz certo significado para a trajetória da personagem – a letra fala de um caminho repleto de trovoadas, raios e tempestades, mas que apesar das turbulências da jornada ela ainda manterá intacta sua pureza e paz interior.
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